terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Cada um carrega sua história

Por Marcelle Oliveira

Quem olha de fora pode se perguntar o que uma garota como eu quer falando insistentemente nas redes sociais sobre racismo e misoginia. Alguns devem achar que sou uma garota mimada que resolveu militar, porque está na moda; outros devem pensar ‘ela nem é preta’, para ficar falando disso toda hora; a maioria, certamente, já pensou ‘só fala de política agora? Tem outro assunto não?’

Cada um carrega sua história, não é mesmo? No entanto, com esse mundo de rede social e de síndrome do ‘mas eu acho isso’, nós acabamos por esquecer que, provavelmente, todas as pessoas possuem motivos para serem quem são, circunstâncias para viverem como vivem, influências para desenvolver seu próprio senso de percepção.

Provavelmente eu não saiba precisar como me descobri interessada pelos direitos das minorias, mas não me recordo de como era antes de ouvir meu pai (que como a maioria dos homens possui atitudes machistas) dizer que nós éramos negros, porque a minha avó é uma mulher preta, que precisou lavar roupa para sustentar 07 (sete) filhos. Para mim, aos 10 (dez) anos, ser preta não era legal, eu escutava, mas não achava bom. Talvez, eu não quisesse ser negra, mesmo que fosse.

Escurecidamente, meu pai sempre foi a pessoa com mais influência dentro da minha casa, eu poderia dizer que isso se deu pelo fato de minha mãe ser muito mais introspectiva do que ele, mas eu sei que a razão maior é a ideia de patriarcado. Dentro da minha casa isso, graças a Deus, não foi de um problema tão grande, meus pais têm duas filhas mulheres e sempre enxergaram a necessidade de criar meninas fortes. E eu, como uma ‘boa filha mais velha’, sempre absorvi a maioria das ideias repetidas pelo meu pai, então, aprendi que eu era negra, e mais, que deveria defender o sistema de cotas, mesmo não sendo cotista no vestibular.

Entenderam? Aos 15 anos meu sonho era passar no vestibular e não entrava na minha cabeça defender o sistema de cotas se eu não poderia utilizá-lo, já que estudei a maior parte da vida em escola privada.

Não poderia defender o sistema de cotas apenas porque era pregado na minha casa, fui ler sobre o assunto e me deparei com a ideia de política pública imediata e com a informação, à época, de que apenas 14% (catorze por cento) dos professores universitários eram negros. E foi ai que eu entendi o que significava minorias, MINORIAS no poder!

Com o tempo, com a universidade, com as andanças no terceiro piso do Shopping da Bahia, eu fui me descobrindo negra, mesmo que alguns não entendam o conceito de negra de pele clara, e isso me custe umas pequenas discussões. Agora, o conceito de feminismo, meu bem, esse demorou para entrar na minha vida, afinal, não é fácil para uma garota de 1,53m, fala dócil e criada (com orgulho) numa família cristã, perceber certas coisas. Mas, meu amigxs, quando a gente sai da vida acadêmica e se lança nesse mundão, a gente precisa ter voz, precisa ser escutada e precisa fazer isso sendo mulher.

O adjetivo ‘filha de fulano’ nunca foi almejado por mim, eu queria ser eu e precisava que as pessoas me vissem dessa forma. Ai eu comecei uma jornada INCRÍVEL na Secretaria de Assistência Social, lá eu escutava pelo menos 08 (oito) mulheres por dia. Uma assistida (que me tocou muito) chorou pedindo pelo divórcio; uma senhora vulnerável pelo analfabetismo me disse que o companheiro dela falou que sua boca fedia, como se ela fosse uma vala de esgoto; outras não aguentavam mais incansáveis Execuções de Alimentos; a maioria com abalos psicológicos gigantescos provenientes de traições conjugais. Ajudá-las a se libertar sempre foi o melhor pagamento.

Processos de Investigações de Paternidade são cansativos, principalmente, porque os supostos pais sabem que são pais de fato, mas se aproveitam da condição biológica de não carregar um bebê na barriga para colocarem a prova uma mulher. A minha avó materna sempre foi ‘mãe solo’, para mim ela sempre foi minha avó, para sociedade ela sempre foi uma mãe solteira. A minha mãe não tem o nome do pai no registro, mesmo ela sabendo quem é/foi ele, e sempre foi constrangedor ter que explicar isso para as pessoas, porque a gente é ensinada a sentir vergonha de erros masculinos.

Eu perdi um primo negro com 17 (dezessete anos) para as drogas e eu sei que a guerra às drogas não existe. O que existe é guerra contra pessoas, não se faz guerra contra coisas, se faz guerra contra povos, contra o povo negro.

Eu nunca convivi com meus avôs biológicos, embora com boa influência masculina, eu entendi que a cumeeira da minha família são mulheres, que sofridamente criaram meus pais e ensinaram, com a boa cultura do exemplo, que dá pra mudar sua própria realidade, mas é mais difícil quando se é mulher e negra.

E é, também, por isso que eu preciso combater a misoginia e o racismo. 

Marcelle Oliveira
Advogada
Pós Graduada em Direito das Mulheres
Atualmente, Assessora Técnico-Jurídica na Promotoria de Justiça da Família Ministério Público da Bahia


Nenhum comentário:

Postar um comentário