Por Sandro Oliveira
Este texto é uma história extensa, mas possui um significado especial para mim, e por isso gostaria de dividir. Pois tem um valor emocional profundo. Também quero expressar minha gratidão pela memória de um amigo, que se dedicava com carinho a me contar causos que eu adorava imaginar. Suas narrativas eram como janelas para mundos que eu criava na minha mente, e guardo com afeição essas lembranças. Me acompanhe nessa viagem pelos caminhos da memória, da imaginação e do significado especial que essas coisas têm para mim. Estou aqui com você, pronto para explorar os caminhos que essa narrativa pode abrir. Boa leitura!
O sonho sob o Pé de Juá
Badunga vivia na comunidade de Bonjuá. O nome desse local originou-se da abundância de árvores de Juazeiro que cresciam na área.
Sob um dos pés de juá havia uma grande rocha que reluzia como cristal. Esse brilho se devia ao fato de que uma cabra costumava se refugiar ali nos dias quentes e, ao cair da noite, escolhia aquela pedra para descansar. Provavelmente, ela preferia esse lugar porque a superfície era bem fresca e proporcionava uma sensação de alívio.
Badunga e outros moradores da vila também seguiam essa prática de descansar sob o pé de juá. Esse local lhe proporcionava um grande conforto, pois a árvore ficava bem em frente à sua casa. Todos os dias, após o almoço, ele se retirava para tirar um cochilo à tarde, enquanto uma cabra repousava sobre uma pedra nas proximidades. A cabra não demonstrava qualquer preocupação com sua presença; ele observava o horizonte, costumava expressar seus pensamentos em voz alta e falava consigo mesmo, enquanto a cabra permanecia ali, tranquilamente mastigando a grama e as folhas verdes.
Em uma das sestas, ele teve um sonho onde um homem idoso, com cabelos e barba brancos, o solicitava a ir até a cabeceira da ponte do Rio de Zé Ribeiro. Essa ponte era localizada a uma boa distância de sua casa, exigindo dias de viagem. Ao despertar, ele compartilhou o sonho com sua esposa. Embora achasse aquilo peculiar, decidiu não dar muita importância e seguiu com a rotina diária.
E assim era sua rotina, o trabalho árduo diário e a sagrada soneca sob o pé de juá. Certa noite, ao se deitar com a esposa, ele compartilhou que havia sonhado novamente com o mesmo sonho. Isso aconteceu várias vezes. Um dia, a esposa sugeriu:
“Badunga, por que você não vai até a cabeceira da ponte do rio para ver se assim você se livra dessa fixação?" Ele respondeu que não iria, pois não acreditava em sonhos e considerava essas coisas sem valor. Sua esposa, então, sentou-se na cama e começou a narrar uma história:
Certa vez, havia um homem chamado José. Ele era uma pessoa de bom coração, mas ao descobrir que sua companheira estava grávida, sentiu-se angustiado, pois ainda não era seu marido. José não conseguia compreender a situação e se preocupava, especialmente porque ela era virgem. José comentou com sua esposa: Se fosse alguém diferente, eu entenderia, mas você, Maria... Como isso pôde ocorrer? Eu acreditava ter encontrado alguém tão inocente... Por que você me fez isso? Por que? Por que? Por que, meu Deus? Por que isso está acontecendo comigo, Senhor? Durante a noite, José se deita e adormece, e então tem um sonho. Um anjo lhe diz:
– “José, descendente de Davi, não tenha medo de tomar Maria como sua esposa, pois o que ela está carregando é do Espírito Santo. Ela dará à luz a um filho, e você o chamará de Jesus, pois ele salvará seu povo de seus pecados”.
Ao acordar, José, confuso, reflete: – Uau, o que ocorreu? Eu dormi e tive um sonho em que o anjo do Senhor veio até mim e revelou toda a verdade! Preciso conversar com Maria, fui tão duro com ela, tenho que pedir desculpas.
Maria, sou apenas um homem simples, um carpinteiro e nada mais. Mas meu Deus olhou por mim e me escolheu para ser o pai do filho de Maria! Aqui estou, Senhor. Após nove meses, nasceu Jesus, o Redentor, nosso Salvador.
Essa narrativa tocou Badunga profundamente, mas ele também sentiu um certo ceticismo. Mesmo assim, decidiu, então, confiar em seu sonho e determinou que ao raiar do dia partiria em um jumento rumo à ponte do rio de Zé Ribeiro. E foi exatamente isso que fez. Preparou sua bolsa, colocou a sela no animal e sua esposa organizou um almoço para ele levar. Ele ainda levou um pouco de dinheiro para comprar comida durante o percurso.
E assim ele seguiu, ao meio-dia, estacionou sob uma árvore para saborear sua refeição. Após o almoço, seguiu com seu hábito de tirar uma breve sesta, pois não poderia se atrasar em sua jornada. Ao anoitecer, encontrou abrigo em uma casa que recebia viajantes. Jantou e, em seguida, se acomodou na varanda, onde começou a fumar um “bode”, um tipo de cigarro de palha que exala um odor forte e desagradável. Logo depois, foi dormir.
Ao raiar do dia, ele saiu para o quintal, onde pegou água que estava sobre o tampão da cisterna e lavou o rosto. Em seguida, dirigiu-se à cozinha e compartilhou o café da manhã com alguns hóspedes. Após terminar a refeição, encheu sua moringa com água e perguntou à proprietária da casa qual era o valor da hospedagem. Para sua surpresa, a mulher respondeu que não haveria custo algum. Ele agradeceu pela estadia e continuou sua jornada.
Pelo trajeto, ele cruzava com rebanhos de gado, grupos de ciganos e diversas pessoas...
Entre as pessoas que encontrou, havia um homem chamado seu Benzinho. Ele estava levando o gado até o rio para que bebesse água. Durante a conversa, acabaram trocando muitas ideias, e seu Benzinho convidou-o para almoçar em sua residência. Inicialmente, Badunga hesitou, alegando que não queria causar incômodo, mas após a insistência, decidiu aceitar o convite. Depois do almoço, ele se levantou da mesa, fez suas despedidas, agradeceu pela refeição e saiu.
No trajeto, parou em uma pequena venda à beira da estrada, onde adquiriu um pão com mortadela e um copo de refrigerante cajuí, e então continuou sua jornada.
Por volta das seis da tarde, ele fez uma pausa em uma pequena capela que estava com as portas abertas. No interior, algumas senhoras idosas estavam oferecendo suas orações ao terço de Nossa Senhora. Ele retirou o chapéu, se pôs de joelhos e, em seguida, sentou-se por um momento, refletindo sobre sua jornada.
Sentia que estava cometendo um grande erro em sua vida, confiando em um sonho que não fazia sentido. Fixou o olhar em uma imagem de Jesus Cristo levando a Cruz, com Nossa Senhora ao seu lado, e também viu uma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Ele fixou o olhar na imagem de Nossa Senhora, fechou os olhos e, embrenhado na melodia das vozes femininas entoando canções dedicadas a Mãe de Jesus, acabou adormecendo. Subitamente, sentiu alguém tocar seu ombro, levando-o a se surpreender; era o missionário responsável pela capela, que o chamava porque já era hora de encerrar as atividades do local.
O missionário indagou sobre seus planos para a noite, ao que ele respondeu que ainda não tinha uma decisão. O missionário então o convidou a passar a noite na residência próxima à capela, e ele aceitou o convite.
Antes de se deitar, o missionário preparou café e pão para eles e indagou sobre o destino de sua viagem. Então, ele compartilhou toda a sua trajetória, e em seguida foram adormecer.
No início da manhã, Badunga despertou, mas preferiu não sair sem antes se despedir do missionário, aguardando que ele acordasse. Ao se levantar, o missionário realizou suas orações matinais e depois se aproximou de Badunga, convidando-o para o café da manhã.
Enquanto tomava seu café, Badunga expressou sua indignação em relação às crueldades e à ausência de amor que os humanos demonstram uns pelos outros. O missionário respondeu que tal comportamento não era uma característica da maioria, ressaltando que, felizmente, existem muitas pessoas bondosas no mundo.
Badunga comentou: é um fato, você é uma dessas pessoas. Na verdade, tenho conhecido muitas pessoas generosas durante minha jornada, não tenho do que reclamar; sou cercado por pessoas incríveis na minha vida...
Era nove horas da manhã, e Badunga já havia atrasado consideravelmente sua jornada, mas não se incomodava, pois até aquele momento tinha escutado e aprendido muitas novidades. Ao chegar por volta do meio-dia, ele avistou, enquanto cruzava uma ponte sobre um pequeno riacho, um homem que se encontrava em um carro com um pneu furado. Ao passar com seu jumento, perguntou se o homem precisava de auxílio, e ele respondeu de imediato que sim.
Ele questionou Badunga se poderia ir até uma borracharia que estava a aproximadamente dois quilômetros de distância. Badunga confirmou que sim, que faria esse favor. Pegou o pneu furado, montou em seu animal e seguiu para a borracharia.
Ao chegar, encontrou o local fechado; o proprietário havia ido almoçar em casa e, conforme relataram, só regressaria por volta das quatro horas da tarde, quando o sol estivesse mais ameno. Badunga ficou apreensivo, pois isso poderia atrasar consideravelmente sua viagem.
Dois garotos com apelidos curiosos, "Fininho" e "Pistolinha", estavam se divertindo em frente à borracharia, jogando bolinhas de gude com habilidade e risadas. Em dado momento, um deles comentou casualmente que poderia ir até a casa do homem chamar – Badunga concordou.
Passaram-se cerca de vinte minutos, e o borracheiro apareceu com sua roupa de trabalho manchada de graxa, ferramentas à mão. O nome do borracheiro era Arnaldo. Com eficiência, ele se pôs a fazer o conserto necessário. Fininho e Pistolinha continuaram por perto, observando o trabalho do borracheiro com uma mistura de curiosidade e diversão, ainda comentando coisas entre si sobre o jogo de bolinhas de gude que tinham interrompido. O ar tinha um cheiro misturado de borracha e óleo, típico do lugar.
Ao retornar, Badunga auxiliou o homem a instalar o pneu e iniciou uma conversa. Embora isso o tivesse atrasado consideravelmente na viagem, Badunga não se importava em bater papo. Foi logo emendando duas perguntas:
– Qual é o seu nome? E qual é a sua ocupação?
Epifânio, conhecido como Sergipe” – respondeu o homem. Eu trabalho como representante de vendas.
O que é o trabalho de um representante de vendas? Questionou Badunga.
– Qual é mesmo o seu nome? – Sou conhecido como Badunga!
Preste atenção, Seu Badunga. Um representante de vendas é o funcionário responsável por comercializar os produtos de um comércio, ou por conta própria, em regiões que não fazem parte da área de atuação desse comércio. Percorremos lugares variados e distantes pelo país, como o que estou visitando agora. Em certas ocasiões, somos a única alternativa que as pessoas possuem para adquirir algo novo ou interessante.
- Ah! Agora compreendi, o senhor é “o homem da prestação”, é assim que nos referimos por aqui.
Badunga solicitou que ele compartilhasse algumas histórias fascinantes de sua experiência como um homem viajante. Sergipe relatou diversas situações, mas uma em particular prendeu a atenção de Badunga: era a história de quando Sergipe ainda não atuava como caixeiro viajante, mas sim trabalhava em uma mercearia.
Sergipe relatou que, enquanto trabalhava naquela mercearia, se enamorou de uma jovem, embora ela nunca tenha percebido seus sentimentos. Ele comentava que, diariamente, passava em frente à mercearia uma bela moça, com longos cabelos lisos, um corpo esguio e um rosto tão encantador que parecia ter saído de um conto de fadas. Na primeira vez que a viu, ficou completamente paralisado, sem conseguir desviar o olhar daquela mulher fascinante. Ela lhe recordou uma menina que havia conhecido no passado, e ele não pôde deixar de notar a semelhança entre as duas.
Contudo, ele não tinha como se aproximar daquela jovem e confessar seus sentimentos por ela, pois estava noivo e comprometido com outra mulher. Isso o atormentava imensamente, a impossibilidade de revelar seu amor. Diariamente, ele a observava enquanto ela caminhava, e só afastava o olhar quando ela desaparecia após a esquina.
Ele pensava que ela estava ciente disso, mas desejava que ele agisse, sem perceber que ele não conseguia. Anos mais tarde, ele deixou o comércio, mas até hoje recorda com carinho e saudade da bela jovem. Atualmente, é um homem casado com uma esposa atraente e tem quatro filhos adoráveis.
Ao concluir a narrativa, ele comentou que era o momento de se retirar e indagou quanto deveria pagar.
– Evidentemente, você não deve nada, foi um ato de gentileza que eu lhe fiz com gratidão – respondeu Badunga.
– Que Deus lhe retribua e tenha uma boa viagem, comentou Sergipe.
Badunga continuou sua jornada em busca de um sonho. Ele pegou sua mochila, retirou algumas codornas grelhadas que o missionário lhe havia oferecido e começou a se alimentar. Estava próximo de alcançar seu objetivo, restando apenas alguns dias de viagem.
Após vários dias na estrada, avistou a ponte, e em breve estaria ali. Ao chegar, desceu do jumento e começou a caminhar. Olhou para os lados, mas não encontrou nada, e refletiu: estou desperdiçando meu tempo, não há nada aqui.
Enquanto caminhava, ao se aproximar do fim da ponte, surgiu um idoso de cabelo e barba alvos, usando um gorro e vestindo roupas desgastadas. Ele conduzia um burrinho que puxava uma carroça. O homem então indagou: o que você está fazendo nesse lugar?
Badunga iniciou sua narrativa dizendo... que teve um sonho, onde alguém o orientava a ir até a ponte do Rio de Zé Ribeiro. O que estivesse na extremidade da ponte seria meu, mas até o momento não descobri nada, nem mesmo água sob a ponte.
O ancião então comentou: eu também tenho sonhos todas as noites, e nesses sonhos, alguém me solicita que vá a um lugar específico onde encontrarei uma árvore, um pé de juá. Sob essa árvore, há uma pedra que sempre abriga uma cabra que dorme ali. Dizem que eu preciso cavar embaixo dessa pedra, pois o que eu descobrir será todo meu. No entanto, eu não irei, meu filho, minha idade já não me permite mais seguir atrás de um sonho. Parece que o senhor confia e está disposto a buscar o que deseja. Uma vez que chegou até aqui, siga em frente na sua busca, não abandone seu sonho. Eu ficarei aqui esperando.
Badunga comentou: isso é uma farsa, fui tolo ao vir aqui.
Ele contemplava a vasta área de solo árido e, ao voltar-se na direção do velho, percebeu que ele havia desaparecido. Sentiu que estava perdendo a sanidade sob o calor intenso, e suas vistas começaram a escurecer. Assim, decidiu se sentar e permaneceu ali por mais de duas horas.
Ao recuperar a consciência, ele começou a recordar o que o idoso havia lhe falado e rememorou o sonho que o homem compartilhou. Assim, foi montando as peças do enigma.
O pé de juazeiro, a cabra repousando sobre a rocha, o segredo escondido sob a pedra...
É possível que eu esteja apenas sonhando? Minha mente ficou confusa por causa da viagem? Não pode ser! Como é que aquele homem tinha conhecimento sobre o pé de juá? E a cabra? Não! Não vou me deixar levar por essa narrativa sem lógica e sentido.
Ele montou no jumento e iniciou sua jornada de retorno. Optou por um trajeto diferente para voltar para casa. Ao longo do caminho, cruzou com um amigo que também seguia naquela direção, e começaram a conversar, mas uma ideia persistente não deixava sua mente.
Não era possível, como aquele homem tinha conhecimento sobre o pé de juá? Sobre a cabra? Sobre a pedra? Não! Não vou me deixar enganar novamente.
Ao parar para descansar, sentou-se e de repente, uma compreensão o atingiu: talvez o segredo não estivesse na ponte, mas no próprio lugar de onde ele veio – Bonjuá, sob o pé de juá, onde a cabra descansava. Levantou-se com uma nova determinação e montou no jumento, iniciando a jornada de retorno para casa.
Ao chegar em Bonjuá, Badunga foi direto para o pé de juá. Olhou para a pedra reluzente onde a cabra costumava repousar e, com uma sensação mista de curiosidade e fé, começou a cavar embaixo da rocha. A terra cedeu com facilidade, e logo ele encontrou um pequeno baú antigo, fechado com uma tranca simples.
Abriu o baú e encontrou dentro dele um pergaminho enrolado, com palavras escritas à mão: "A verdadeira riqueza está nos sonhos que seguimos com fé. O que é seu, sempre esteve perto de você."
Badunga sentiu uma paz profunda. Compreendeu que a jornada não foi sobre encontrar algo material, mas sobre entender a conexão entre os sonhos, a fé e o lugar onde ele sempre encontrou conforto – sob o pé de juá, em Bonjuá. Ele voltou para casa, compartilhando a experiência com sua esposa, e ambos refletiram sobre como os caminhos da vida podem nos levar a descobrir o que já estava próximo, mas que precisava ser buscado com coração aberto.
E assim, Badunga continuou a descansar sob o pé de juá, mas agora com um novo sentido de propósito, sabendo que alguns segredos são desvendados quando seguimos os sonhos com uma mistura de fé e descoberta interior.
Sandro oliveira